A vontade como ilusão e a contingência como liberdade

Em algum lugar Marx explica que o sistema capitalista não só submete ao proletário senão que também o próprio burguês fica preso do mecanismo que o sustenta. Ele não seria "livre" senão que rigorosamente cumpriria uma função já determinada na qual não pode escolher volitivamente.

Algo análogo aconteceria em outros casos.

O racismo, a xenofobia, a homofobia, o machismo, o sujeito inconformadamente bem comportado e todas as formas de redução do outro diferente a mero resíduo eu as entendo como as formas que alguns sujeitos têm de expulsar aquilo que é intolerável e sem possibilidade de ser nomeado em si mesmo.
Assim, se faz uma caricatura do outro estranho, alheio que é usada como depositária daquilo que não tem como ser acolhido e elaborado no espaço onde ele se reconhece enquanto tal. 
Dessa forma, o outro excluído do âmbito das relações identitárias é resíduo, excremento, algo que não cabe nas relações de troca entre indivíduos identificados como semelhantes. 

O “negro” para aquele jornalista é alguém que faz o que ele não pode fazer, ele deve se comportar, mas o “negro” não se comporta, não se submete á obediência das regras, faz o que ele bem entende, buzina, faz aquilo que ele não pode fazer e como isso é intolerável é tratado como residual. O “negro” não é alguém específico, é apenas uma construção imaginária, mas para que funcione ele deve encontrar indivíduos concretos em quem colocar sua caricatura e dessa forma dar lugar àquilo que não tem lugar em seu sistema de reconhecimento. O jornalista não tem possibilidade de tratar com isso que o perturba nem em ele nem no outro. Por isso, o outro não pode ter estatuto de sujeito, alguém com direito e liberdade, “o negro”, “o estrangeiro”, “a mulher”, “o judeu”, “o árabe” etc. não existem, mas precisam ser construídos narrativamente no lugar do excluído para ele (o jornalista) poder seguir obedecendo e sendo bem comportado. 
Assim, o bem comportado forçadamente comportado em vez de lidar com sua situação desconfortável de obediência que o incomoda expulsa isso e o identifica no outro como residual. Isso tem consequências sociais e políticas: fomenta uma sociedade excludente onde a diferença não tem lugar a não ser como excremento, como algo com o qual nada pode se fazer, como objeto a ser descartado no banheiro ou na marginalidade. Isso também favorece o genocídio e o extermínio. Torna suportável o assassinato em massa.
De acordo com o ibge, em 2016 no Brasil a cada 23 minutos um “negro” morre violentamente, é assassinado por diferentes motivos. Se “o negro” fosse identificado como semelhante, reconhecido nos traços do seu rosto e sujeito de uma história pessoal, isso já seria nomeado como genocídio. Mas não é porque cada um deles se apaga no mecanismo da generalização e da caricatura. Não tem como alcançarmos como sociedade esse número de assassinados que aumenta a cada ano sem um sistema que funcione  eficazmente e sem a necessidade de uma vontade consciente que opere com essa intenção. O racismo está tão bem instalado que não precisa de uma pessoa física que conscientemente mande e planeje. O sistema funciona automaticamente porque é alimentado pela estrutura do discurso e os mecanismos de exclusão. Esse sistema é fortalecido pelos gestos fascistas da vida cotidiana, do dia a dia, daquilo que é natural que aconteça para nós. 

O problema não está nas palavras, mas no lugar desde onde o sujeito da enunciação fala.  O problema não é fazer um chiste senão o lugar desde onde o sujeito da enunciação faz o chiste. Lugar discursivo e institucional. Uma coisa é fazer um chiste de argentino, judeu ou negro e rir junto com ele. Outra coisa é se utilizar do chiste para rir do outro tratando o outro como objeto residual. Essa situação não ofende apenas “o negro”, “o judeu” ou “o estrangeiro” mas á comunidade em sua comum unidade, em sua comum união, em sua comunhão como lugar de acolhimento daquilo que é diferente, do que não é Eu.
O racismo do jornalista em questão não está no enunciado, mas na enunciação.  Ele fala isso rindo do outro sem o outro, num lugar institucional que não é nem indiferente nem carente de poder real no horizonte de sentido onde se produz sentido comum.


O racismo, a xenofobia, a homofobia, o machismo, o sujeito inconformadamente bem comportado e todas as formas de redução do outro diferente a mero resíduo não são apenas ofensas pessoais, são elementos corrosivos da possibilidade da emergência de algo como o efeito de um sujeito de desejo. Sua execução procura a anulação do outro enquanto sujeito, busca anular a própria possibilidade do efeito de sujeito e fortalece o efeito de massa na qual aparecem não só a “vitima” senão também o “carrasco”.

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