TEMAS SEMÂNTICOS EM KANT

Um novo livro organizado por Andrea Faggion e Joãosinho Beckenkamp da DWW Editorial com uma série de trabalhos de pesquisa sobre a filosofia kantiana.


Aqui encaminho a introdução da minha contribuição.
Conceitos de antropologia fisiológica na antropologia kantiana: Kant e os naturalistas em um debate sobre a natureza humana

Daniel Omar Perez

1.       Introdução acerca do modo de abordagem e do tópico em questão
O fato de Kant nunca ter escrito que o verdadeiro problema da razão pura era o de fazer uma ontologia, ou uma fundamentação das ciências teoréticas, ou uma explicação de como funciona a mente é o que nos autoriza a deixar de lado esse tipo de interpretação e levar adiante a leitura da declaração direta e sem ambiguidades de sua própria letra. Assim, segundo consta em seu escrito, a filosofia crítica pode ser abordada a partir da sua questão fundamental enunciada do seguinte modo: “o verdadeiro problema da razão pura está contido na seguinte pergunta: como são possíveis os juízos sintéticos a priori?” (KrV, B 19). Segundo Kant, a pergunta acerca da possibilidade dos juízos, e não outra, é a questão fundamental da crítica. Se, como quer Kant, isto é verdadeiro em relação ao seu próprio trabalho, então o nosso só pode partir daqui. Essa interrogação, por um lado, serve como início do programa kantiano e, por outro lado, funciona como fio condutor para desenvolver uma interpretação sistemática dos trabalhos desenvolvidos durante os anos de 1780 e 1790 e ainda articular as questões apresentadas no denominado período pré-crítico. Deste modo, podemos entender que o exercício crítico da filosofia – em sentido kantiano – é uma pesquisa sobre as condições lógico-semânticas das proposições, que não se sustentariam apenas no princípio de identidade e não-contradição. Em outras palavras, a pergunta acerca das condições de possibilidade das proposições não é apenas uma declaração oriunda da letra de Kant e nem um fio condutor para a interpretação de textos, é também um modo de entender o trabalho da filosofia.
Assim sendo, o presente trabalho foi iniciado com a tese de doutorado de Loparic (1982), publicada sob a forma de livro em (Loparic, 2000): A semântica transcendental de Kant. O resultado mais importante desse estudo foi compreender a razão como aparelho formulador e solucionador de problemas propostos a partir de proposições cognitivas válidas. A validade das proposições teoréticas (cognitivas) estaria decidida por uma regra lógica e duas semânticas, a saber: 1) As proposições não podem ser autocontraditórias; 2) Os conceitos das proposições devem poder referir a objetos dados ou construídos na sensibilidade; 3) As formas proposicionais devem poder se relacionar com as formas da sensibilidade. Após esta pesquisa, Loparic publicou durante a década de 1990 outros textos como resultado parcial do avanço em outros tipos proposicionais. Deste modo, podemos ir da primeira crítica para a segunda e a terceira com o mesmo fio condutor e nos perguntar sobre a possibilidade das proposições cognitivas, práticas, estéticas etc., compreendendo a razão em sentido amplo como aparelho ou dispositivo para formular e decidir a possibilidade de resolver problemas em diferentes campos semânticos. Avancei sistematicamente nessa questão na minha tese de doutorado defendida em 2002, publicada em forma de livro com modificações em 2008. Este trabalho conduziu-nos não só a interrogarmos a possibilidade dos tipos específicos de proposições da experiência cognitiva teorética e prática em sentido estrito, como também às proposições da história, do direito, da política, da pedagogia, da virtude e da antropologia pragmática, até nos levar para a indagação acerca dos elementos “antropológicos” do executor das operações lógico-semânticas do formulador e solucionador de problemas. A primeira parte deste trabalho foi sendo realizado durante a década de 1990 e 2000 pelo que Ricardo Terra (2012) denominou de “a escola semântica”, referindo-se às diversas publicações do grupo tais como Loparic (2000), Hahn (2006), Faggion (2006), Linhares (2005), Perez (2008), entre outros. A segunda parte dos trabalhos, aquela que se refere aos elementos “antropológicos” do executor das operações, ainda está sendo desenvolvida.
O tipo específico de proposições da antropologia pragmática fez aparecer em destaque o problema da relação entre a estrutura proposicional e a natureza humana. A estrutura proposicional, estudada sob a pergunta acerca das condições de possibilidade dos juízos, tem relação com o aparelho executor das operações judicativas, estudada sob a pergunta acerca da natureza humana. Abordei esse tema em três textos (Perez, 2009, 2010a e 2010b). Porém, é preciso destacar que, por outras vias, estudiosos como Louden (2000), Longuenesse (2005) e Hanna (2006) – entre outros – também foram levados a perguntar sobre a mesma relação que destacamos, a saber, sobre a relação entre juízo, razão e natureza humana. No caso de Louden, a antropologia é considerada a parte impura da filosofia prática que, desde a pureza da sua fundamentação, encontraria na natureza humana o seu domínio de aplicabilidade. Nos casos de Longuenesse e Hanna, uma natureza humana teria sido pressuposta por Kant e seria anterior à sua teoria do juízo. Em Longuenesse, sua posição está muito clara na introdução da sua publicação de 2005, quando destaca o ponto de vista humano e explica sua interpretação da posição de Kant. Em Hanna (2006), seu trabalho mostra uma filosofia da mente com uma natureza humana dotada de determinadas características físicas e de um funcionamento que produzem representações.
Nossa hipótese, como já se advertiu até aqui, é a que Kant, no seu período crítico, parte da estrutura de uma proposição da qual se pergunta sobre suas condições de possibilidade (formulação e validade) e daí deriva a natureza “humana” do executor das operações judicativas. À medida que fomos avançando no detalhe da relação proposição-natureza humana, descobrimos que as questões antropológicas não apareciam apenas no curso de antropologia senão que perpassavam toda a obra de Kant.
Um trabalho de Claudia Schmidt (2007) nos oferece diferentes documentos textuais e alguma referência a outros estudiosos, nos quais se encontrariam possíveis caracterizações da antropologia em sentido transcendental, empírico, pragmático e moral. Pela nossa parte, podemos constatar o que chamamos de um projeto antropológico (no sentido em que uma interrogação significativa e sistemática avança na filosofia kantiana) desde o período pré-crítico até a Opus Postumun. Este “projeto antropológico” se apresenta como uma antropologia empírica de comportamentos sociais ou individuais aplicada a temas de estética e psicologia (especialmente em textos da década de 1760); conceitos de anatomia comparada, de estudos de biologia e fisiologia que podemos caracterizar como antropologia fisiológica (encontrados espalhados em publicações, cursos e cartas desde 1760 até 1802); elementos de antropologia pragmática como conhecimento de mundo (especialmente no curso); a menção a um projeto de antropologia transcendental associado à ideia de uma crítica do conhecimento (nas críticas e na Rx 903 do volume XV) e uma antropologia prática caraterizada como a parte “empírica” da filosofia prática (nos textos publicados de filosofia prática, nos cursos de moral e no volume XXIX, p. 599). Por um lado, encontramos tipos de conhecimentos específicos da natureza humana em cada caso; por outro lado, porém, encontramos elementos de uma natureza humana que operaria como executora das regras que efetivam os juízos. Neste sentido, é preciso não se apressar na afirmação de que Kant adota uma determinada natureza humana a partir da qual deriva uma teoria do juízo, sem antes investigar todos os aspectos do que está sendo considerado em cada caso.
O projeto antropológico compor-se-ia de elementos das cinco antropologias e estaria articulado sistematicamente na formulação das três perguntas kantianas acerca do saber, do fazer e do esperar que conduzem à quarta: o que é o homem? Dito em outras palavras, Kant perguntar-se-ia sobre a possibilidade dos juízos e, na sua resposta, além de encontrarmos regras lógico-semânticas, também nos deparamos com os elementos que compõem o executor dessas regras.
Assim, para investigar todos os aspectos do projeto antropológico de Kant, consideramos necessário e preliminar nos interrogarmos acerca do surgimento dos debates e dos conceitos a serem utilizados nos textos que nos interessam. Neste sentido, uma declaração de Zammito (2002) sobre o nascimento da antropologia é bem pertinente. Cito Zammito:
A cristalização do discurso antropológico se origina desde a convergência (con-fusão) de uma quantidade de investigações diferentes: o modelo médico da psicologia fisiológica, o modelo biológico da alma animal, o modelo pragmático ou conjetural da teoria histórico-cultural, o modelo psicológico literário do novo romance (Tristam Shandy, Sorrows of Young Werther), e o modelo filosófico da psicologia racional fundada no dilema da interação da substância (As três hipóteses). (2002, pp. 221-222)
Com efeito, durante todo o percurso do seu trabalho, Kant se nutre de e debate com filósofos, mas também com médicos, psicólogos, romancistas e com escritores de teatro e poesia. Kant vai além dos naturalistas da época, lançando mão do teatro e da poesia como a de Molière, Shakespeare, Alexander Pope, Juvenal e Homero para investigar o que é o homem. Antes de entrar por essa via, porém, o que nos interessa aqui é especialmente a relação com os pesquisadores de história natural. É no diálogo – às vezes concordante e às vezes discordante – com estes cientistas que aparecem conceitos decisivos para a indagação kantiana acerca da natureza humana e que serão interpretados e peculiarmente usados em toda sua obra, inclusive para interpretar as fontes literárias.
Os diários de viagens dos marinheiros e os estudos de anatomia comparada escritos desde o século XVI até as tentativas de classificação da natureza do século XVIII propiciaram o material com o qual Kant foi se munir para sua reflexão. O homem como um dos objetos de trabalho da história natural tinha sido incluído por John Ray em 1693 em um sistema classificatório de seres vivos. Mais tarde, no ensaio sobre o orangotango de 1699 de Tyson, o ser humano se encontraria dentro do conjunto dos primatas. Em 1735 com Linnaeus foi explicitamente incluído em uma classificação formal junto com animais e plantas e, em 1749, o conde de Buffon acrescenta uma discussão necessária sobre a natureza em geral, que ecoará na interpretação sobre as diferenças entre os homens. Passa-se, assim, de lhe darmos um lugar na classificação a nos perguntarmos sobre suas mudanças, diferenças específicas e peculiaridades.
Neste percurso, a História Natural instaurou um debate sobre o modo de abordar seu objeto em geral que incluía uma variante no modo de entender também o homem. Os naturalistas, que realizavam trabalhos de campo e recolhiam a informação in loco, precisavam estabelecer um método. A discussão se deu entre uma concepção de história natural descritiva e outra de desenvolvimento da história da natureza. O debate das diferentes perspectivas de estudo do século XVIII entre Naturbeschreibung e Naturgeschichte foi retomado por Immanuel Kant a partir dos textos do conde de Buffon e em confronto com os naturalistas Forster – pai e filho – e com Herder. Esses modos de estudo da natureza também estavam estreitamente relacionados com as teorias da poligenia, da monogenia e da epigenia na biologia. Esses conceitos remetem para o problema da origem e para a formação dos seres vivos em geral e dos humanos em particular. Kant entrou nesse debate em favor de uma origem única da espécie humana, mas incluiu o uso do conceito de germe e de impulso formativo (Blumenbach) para explicar a diferença de formas e as capacidades humanas, especialmente no que concerne à raça e ao gênero. A partir daqui é possível compreender a introdução de conceitos como disposição, temperamento e caráter que serão úteis para articular os elementos anátomofisiológicos com as condutas práticas em geral ou especificamente morais. Todos esses conceitos foram usados por Kant como elementos para constituir o executor das operações judicativas teóricas, práticas e reflexionantes.


Neste trabalho apresento em primeiro lugar a disputa descrição-narração na história natural; em segundo lugar, a diferença poligênese-monogênese; e, em terceiro lugar, a questão da epigênese e da pré-formação. Cabe mencionar que os debates de Kant foram realizados durante a década de 1770 e 1780. Com estes elementos, que surgem da história natural, poderemos ver as marcas conceituais da concepção kantiana da problemática da história e da natureza humana e, em especial, do conceito de raça. Nosso objetivo é demonstrar que os conceitos são originados em discussões da história natural, mas são também reinterpretados e ressignificados por Kant no seu novo uso. O esclarecimento do debate e o reconhecimento da interpretação kantiana dos conceitos da história natural permitir-nos-iam entender parcialmente o alcance e o limite dos elementos “antropológicos” do executor das operações lógico-semânticas do formulador e solucionador de problemas do qual falamos no inicio deste trabalho.

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