Fragmento do início do livro "Kant e os sentimentos de uma filosofia prática"

ABERTURA: da ontologia às condições de possibilidade

O percurso até chegar à questão
Quando escrevi Kant e o problema da significação (2008) procurei mostrar que a partir do trabalho crítico de Kant já não podemos sustentar uma ontologia como ciência do ser enquanto ser e seus atributos fundamentais ou uma metafísica como ciência do suprassensível e que o labor do filósofo consiste em perguntar pelas condições de possibilidade das proposições abrindo campos semânticos em cada caso segundo o tipo proposicional (cognitivo, prático ou reflexivo) e assim poder dar conta de experiências desde um lugar de enunciação marcado pela finitude.
Na sequência, quando escrevi Ontologia sem espelhos (2015), em colaboração com meus colegas Bocca e Bocchi, a ideia foi mostrar o fracasso de uma teoria última sobre uma realidade última a partir da polêmica de Descartes a Kant sobre a prova da realidade dos objetos externos e a necessidade de recorrer a uma ficção originária. Para isso utilizamos os textos de Jorge Luis Borges e Sigmund Freud. Sem citar, aquele trabalho retomava o espectro de Hans Vaihinger (2011) em A filosofia do como se onde a marca ficcional da realidade não pode ser senão originária do ponto de vista estrutural. Esses dois livros me conduziram a pensar que a ontologia não poderia ser mais fundamental ou primeira senão apenas transformada em teoria dos objetos e campos de sentido desses objetos e a metafísica devia ser substituída kantianamente por uma investigação acerca das condições de possibilidade.
Dito por outras palavras se trata de avançar numa teoria de domínios ou campos semânticos enquanto condições de possibilidade de objetos, sujeitos e problemas. Assim, as diferentes experiências, incluídas as do conhecer, do agir e do contemplar com todos seus elementos não poderiam se entender senão dentro de diferentes campos de sentido. Isto supõe que o conhecer, o agir ou o contemplar não seria possível senão a partir de algum tipo de determinação ou reflexão específica que deve ser explicitada.
Em O inconsciente: onde mora o desejo (2012), a ideia da produção do livro foi mostrar que a elaboração freudiana de o Inconsciente se pautava pela abertura de uma nova causalidade, isto é, um novo campo de sentido. Assim, uma ação poderia ser pensada (1) desde o ponto de vista da causalidade natural dos corpos, numa experiência cognitiva, (2) desde o ponto de vista da causalidade livre consciente de um sujeito, numa experiência prática, ou (3) desde a determinação psíquica inconsciente, numa experiência de desejo e recalque. Deste modo, o doutor Freud não só acolheria sintomas somáticos (causalidade natural) e ações volitivas (causalidade livre consciente) senão também casos de histeria e neurose obsessiva introduzindo um novo registro de determinação (psíquica inconsciente).

Aquilo que estava em jogo no percurso do nosso trabalho era (1) uma crítica a um realismo ontológico do ser enquanto ser enunciado desde o absoluto (lugar impossível de ser ocupado e ao mesmo tempo pressuposto como lugar de enunciação do realista) e (2) a proposta de uma tarefa filosófica como indagação das condições de possibilidade (em sentido transcendental) de uma experiência. Formulação esta que só pode ser feita desde um lugar de enunciação finito e, portanto, até certo ponto determinado. Assim, deixamos a filosofia do absoluto para aqueles que conseguem demonstrar a possibilidade de falar desde um não-lugar de enunciação ou se autorizam a pensar desde uma mente divina.

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