O esquecimento como metáfora.
Se
concedermos o argumento de que a filosofia deve pensar o sentido, então devemos
concordar com que o esforço empreendido pela metafísica para responder a
pergunta pelo sentido originou um trajeto histórico que pode ser definido junto
com Heidegger como história do esquecimento do ser. O caminho inicial que
trilhou a metafísica mostrou-se dominante em todo o curso dos textos
filosóficos e depende do sentido concedido, fundamentalmente, pela filosofia
platônica e aristotélica[1].
A história da metafísica se caracteriza, portanto, por uma determinada
compreensão de ser que o interpreta a partir da totalidade do ente. Escreve
Heidegger: o Uno enquanto unidade unificante servirá de norma para a
determinação posterior do ser[2]. A metafísica realizou seu percurso
histórico colocando estrategicamente o ente no lugar do ser. Desse modo, para
dizer muito rapidamente e sem rodeios, na tradição, o ser foi pensado dentro
das características e condições próprias do ente, procurando apreende-lo
através do pensamento da representação. A necessidade objetivante e
presentificadora do pensamento humano acabou por encobrir a pergunta
fundamental da filosofia, e isso ficou expresso na utilização de uma
determinada imagem em cada caso.
O
procedimento da metafísica consiste em escolher um ente dentre todos os entes e
coloca-lo como Ser ou
fundamento. Com isso, antes que o ser pudesse acontecer de um modo próprio em
sua verdade inicial, ele se encontra vinculado a imagens ônticas.
Na
metafísica moderna o ente interpretado como fundamento passa a ser o homem na
medida em que esse ente é estabelecido como sujeito. O esquecimento na época
moderna acontece na medida em que o domínio representativo do sujeito e do
objeto se consolida. Através do sujeito tudo passa a se converter em objeto.
Nesse momento da história do esquecimento do ser o ente é pensado a partir da subjetividade
do sujeito. A resposta de Descartes à interrogação da questão do ser fica a
cargo do eu, sujeito pensante.
Quando o filósofo estabelece o homem como sujeito pensante, o eu se transforma em todo o que é. O sujeito é
consolidado como o fundamento de toda verdade. Tudo deve poder ser representado
perante o eu. Para o eu
cartesiano as coisas se apresentam na representação e podem ser apreendidas na
medida em que são convertidas em objeto para o sujeito. O sujeito está no lugar
do ser instalando o que é. O sujeito se transforma em pano de fundo, na base,
no último ponto a ser pensado. A operação metafísica detém o pensamento em essa
figura.
No caso do
trajeto filosófico de Nietzsche apresenta-se uma rejeição à metafísica e à
concepção da filosofia fundada na tradição que pretende acabar com os seus
fundamentos. O escritor Nietzsche questiona sobretudo a concepção da vida tal
como foi compreendida até então pelo homem. Essa crítica reagiu de maneira
penetrante contra o platonismo e a doutrina religiosa do cristianismo (o
platonismo para o povo), como sendo ambos os principais responsáveis pela
compreensão errônea da filosofia ocidental. Nietzsche, propõe, a partir daí,
uma inversão de tudo o que se considerou como bom e verdadeiro. Essas questões
deveriam ser problematizadas porque todas elas foram encobertas pelo valor e
pela transcendência. A vida do homem é apresentada em função de uma determinada
concepção de valor e de avaliações morais. O homem ocidental possui a
necessidade de representação e de valoração para que possa compreender a vida.
Essa compreensão se dá através de um sentido transcendente. Para Nietzsche o
sentido estaria dado pela metafísica a partir de um além, uma transcendência. A
metafísica seria um encaminhamento para um “mundo verdadeiro” situado para além
do mundo real, como degradado. Desde o início a metafísica colocou o problema
da concepção da vida (aquilo que existe, o mundo, o ser no seu conjunto, etc.)
como a questão do existente autêntico que sempre foi mostrando como a medida de
toda determinação da condição do ser. Segundo a afirmação nietzscheana, no
platonismo esse ser autêntico se encontra para além do mundo. Assim, existiria
em Platão, por um lado, um mundo ultramundano de coisas eternas e, por outro
lado, as coisas terrestres e finitas mostradas como meras cópias. O que
Nietzsche percebe no platonismo é que existe uma operação de fundamentação
hierárquica entre essas duas dimensões anteriormente citadas. Assim, a
concepção platônica de vida e de mundo pressupõe uma outra dimensão, o mundo
inteligível ou metafísico. Para que as coisas possuam um sentido deve haver um
transcendente. A realidade do mundo deve pressupor o mundo inteligível. Desde
Platão, toda a cultura ocidental estaria baseada na consideração de uma figura,
de um conceito de verdade, de bondade, de ser, que nos permite medir e por sua
vez fundamentar aquilo que existe no mundo. Esta figura aparece como a condição
do existir mesmo das coisas. A esta “figura” Platão deu-lhe o nome de eidos. As idéias conferem forma a toda a
existência das coisas perecíveis e limitadas. Desse modo, em todo o curso
metafísico da tradição, algo deve ser colocado como o real para que a coisa
possa ser. As dimensões do inteligível e do sensível passam a caracterizar
horizontes diferentes em que somente o mundo transcendental pode pensar o ser
do ente, ou melhor, onde somente este pode outorgar sentido aos entes
intramundanos. Assim, para caracterizar as coisas deve-se pressupor sempre que
há algo que não muda, que não é passível de transformação. Para Nietzsche a
superação da metafísica baseia-se em uma crítica à transcendência. Não
existiria um fundamento do aquém no além e, portanto, não se poderia pensar a
partir de uma essência. O que existe para o filósofo é a vontade de
poder que em cada caso é. A través dos
conceitos nietzscheanos de força e vontade de poder a transcendência deixaria
de existir e o que agora se mostraria seria a pura imanência do ser.
Entretanto,
segundo Heidegger, a inversão nietzscheana do platonismo permanece no interior
da metafísica. Escreve Heidegger:
“essa espécie de
superação da metafísica, que Nietzsche tem em vista e, bem no sentido do
positivismo do século XIX, não obstante numa transformação mais elevada, não
passa de um envolvimento definitivo com a metafísica. Parece na verdade que
aqui se marginaliza o “meta, a transcendência rumo ao supra-sensível em favor
de uma firme permanência no elementar da sensibilidade. Enquanto isso, porém,
não se faz outra coisa do que dar acabamento ao esquecimento do ser, liberando
e ocupando o supra-sensível como vontade de poder” [3].
Com efeito,
para Heidegger o problema em questão da metafísica não é apenas a relação de
fundamentação hierárquica entendida em Nietzsche como crítica à transcendência,
mas pensar o ser como presença, fixar o pensamento do ser em uma imagem, mesmo
sensível. Assim, a vontade de poder se ergue como a causa primeira ou como a
imagem primaria. A verdade do ente é mostrada através da vontade de poder e do
eterno retorno. Esses dois conceitos expressam a maneira como Nietzsche
compreende o ser do ente no seu conjunto. Para Heidegger, é justamente através
da vontade de poder e do eterno retorno que Nietzsche acaba por pensar os fios
condutores de toda a problemática metafísica, a essência e a existência.
Vontade de poder e eterno retorno se colocam como figuras substitutivas do ser
como presença, isto é, do esquecimento. Mesmo quando o eterno retorno já não
funcione como princípio ontológico senão como o apelo para de uma vida ética o
sintagma re-envia para um outro sentido que o torna possível em seu
esquecimento.
Mas o
esquecimento é apenas um dos lados de uma dupla operação. É através da própria
história do esquecimento do ser, impressa nas figuras da metafísica, que se
torna possível investigar aquilo para onde se aponta. As figuras da metafísica,
na mesma medida em que ocultam o sentido originário do ser o revelam. O que
está em jogo, é a dupla operação da figura metafísica que no mesmo momento em
que oculta o sentido o revela na sua história. É devido à ocultação que se pode
revelar e somente pode revelar-se como aquilo que é, ocultando-se nas figuras
da metafísica. Se o processo da história da metafísica fosse apenas unívoco,
isto é, de esquecimento, o pensamento do ser se colocaria como o coroamento de
um tempo linear e unidirecional. Mas porque não é apenas esquecimento senão
também revelação aquilo que se inscreve na metafísica é, então, que podemos
pensar os sentidos do ser. Em uma dimensão a figura oculta, em outra revela. É
a dinâmica própria da metáfora.
A metáfora é
um tipo de metassemema. A definição geral de metassemema é a substituição de um
significante por outro que comporta uma modificação do conteúdo semântico de um
termo, essa modificação resulta da supressão e adição de semas. Formalmente a
metáfora se liga, por um lado, a um sintagma onde aparecem contraditoriamente a
identidade de dois significantes e, por outro lado, à não identidade de dos
significados.
Nos casos
das imagens metafísicas que apresentamos anteriormente vemos funcionando dois
níveis semânticos diversos. Um dentro da estrutura do próprio discurso (que
remete a um tipo de significado e funciona como esquecimento) e o outro, na
dimensão da história do ser (que remete a outro significado e funciona como
revelação daquilo que é). A imagem metafísica se apresenta como fixando um
sentido determinado à estrutura da presença, mas também como apresentando a
possibilidade de sentido daquilo que não pode ser presente. A imagem metafísica
é metáfora porque revela aquilo que oculta, e só pode funcionar desse modo.
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