CONCEITOS DE ANTROPOLOGIA FISIOLÓGICA NA ANTROPOLOGIA KANTIANA


CONCEITOS DE ANTROPOLOGIA FISIOLÓGICA NA ANTROPOLOGIA KANTIANA: KANT E OS NATURALISTAS EM UM DEBATE SOBRE A NATUREZA HUMANA

Daniel Omar Perez
CNPq – PUCPR


  1. Introdução acerca do modo de abordagem e do tópico em questão

O fato de Kant nunca ter escrito que o verdadeiro problema da razão pura era o de fazer uma ontologia, ou uma fundamentação das ciências teoréticas, ou uma explicação de como funciona a mente é o que nos autoriza a deixar de lado esse tipo de interpretação e levar adiante a leitura da declaração direta e sem ambiguidades de sua própria letra. Assim, segundo consta em seu escrito, a filosofia crítica pode ser abordada a partir da sua questão fundamental enunciada do seguinte modo: “o verdadeiro problema da razão pura está contido na seguinte pergunta: como são possíveis os juízos sintéticos a priori?” (KrV B19). Segundo Kant, a pergunta pela possibilidade dos juízos, e não outra, é a questão fundamental da crítica. Se, como quer Kant, isto é verdadeiro sobre seu próprio trabalho, então o nosso só pode partir daqui. Essa interrogação, por um lado, serve como início do programa kantiano e, por outro lado, funciona como fio condutor para desenvolver uma interpretação sistemática dos trabalhos desenvolvidos durante os anos 1780 e 1790 e ainda articular as questões apresentadas no denominado período pré-crítico. Deste modo, podemos entender que o exercício crítico da filosofia –em sentido kantiano- é uma pesquisa sobre as condições lógico-semânticas das proposições que não se sustentariam apenas no princípio de identidade e não-contradição. Por outras palavras, a pergunta pelas condições de possibilidade das proposições não é apenas uma declaração da letra de Kant e nem um fio condutor para a interpretação de textos, é também um modo de entender o trabalho da filosofia.
Assim sendo, esse trabalho foi iniciado com a tese de doutorado de Loparic (1982), publicada na forma de livro em (2000) A semântica transcendental de Kant. O resultado mais importante desse estudo foi compreender a razão como aparelho formulador e solucionador de problemas proposto a partir de proposições cognitivas válidas. A validade das proposições teoréticas (cognitivas) estaria decidida por uma regra lógica e duas semânticas, a saber: 1. As proposições não podem ser autocontraditórias; 2. Os conceitos das proposições devem poder referir a objetos dados ou construídos na sensibilidade; 3. As formas proposicionais devem poder se relacionar com as formas da sensibilidade. Após esta pesquisa Loparic publicou durante a década de 1990 outros textos como resultado parcial do avanço em outros tipos proposicionais. Deste modo, podemos ir da primeira crítica para a segunda e a terceira com o mesmo fio condutor e nos perguntar pela possibilidade das proposições cognitivas, práticas, estéticas, etc. e compreender a razão em sentido amplo como aparelho ou dispositivo para formular e decidir a possibilidade de resolver problemas em diferentes campos semânticos. Avancei sistemáticamente nessa questão na minha tese de doutorado defendida em 2002, publicada em forma de livro com modificações em Perez (2008). Este trabalho nos conduziu não só a interrogarmos a possibilidade dos tipos específicos de proposições da experiência cognitiva teorética e prática em sentido estrito senão também as proposições da história, do direito, da política, da pedagogia, da virtude e da antropologia pragmática, até nos levar para a indagação acerca dos elementos “antropológicos” do executor das operações lógico-semânticas do formulador e solucionador de problemas. A primeira parte deste trabalho foi sendo realizado durante a década de 1990 e 2000 pelo que Ricardo Terra (2012) denominou de “a escola semântica” referindo-se ás diversas publicações do grupo tais como Loparic (2000), Hahn (2006), Faggion (2006), Linhares (2005), Perez (2008), entre outros. A segunda parte dos trabalhos, aqueles que se referem aos elementos “antropológicos” do executor das operações está sendo desenvolvido.
O tipo específico de proposições da antropologia pragmática fez aparecer em destaque o problema da relação entre a estrutura proposicional e natureza humana. A estrutura proposicional, estudada sob a pergunta acerca das condições de possibilidade dos juízos, tem relação com o aparelho executor das operações judicativas, estudada sob a pergunta acerca da natureza humana. Abordei esse tema em Perez (2009), (2010) e (2010b). Porém, é preciso destacar que por outras vias, estudiosos como Louden (2000), Longuenesse (2005) e Hanna (2006) –entre outros- também foram levados a perguntar pela mesma relação que destacamos, a saber, entre juízo, razão e natureza humana. No caso de Louden a antropologia é considerada a parte impura da filosofia prática que desde a pureza da sua fundamentação encontraria na natureza humana seu domínio de aplicabilidade. Nos casos de Longuenesse e Hanna uma natureza humana teria sido pressuposta por Kant e seria anterior à sua teoria do juízo. Em Longuenesse sua posição está muito clara na introdução da sua publicação de 2005, quando destaca o ponto de vista humano e explica sua interpretação da posição de Kant. Em Hanna (2006) seu trabalho mostra uma filosofia da mente com uma natureza humana com determinadas características físicas e de funcionamento que produzem representações.
Nossa hipótese, como já se advertiu até aqui, é a que Kant, no seu período crítico, parte da estrutura de uma proposição da qual se pergunta sobre suas condições de possibilidade (formulação e validade) e daí deriva a natureza “humana” do executor das operações judicativas. Na medida em que fomos avançando no detalhe da relação proposição-natureza humana descobrimos que as questões antropológicas não apareciam apenas no curso de antropologia senão que perpassavam toda a obra de Kant.
Um trabalho de Claudia Schmidt (2007) nos oferece diferentes documentos textuais e alguma referência a outros estudiosos onde se encontrariam possíveis caracterizações da antropologia em sentido transcendental, empírico, pragmático e moral. Pela nossa parte, podemos constatar o que chamamos de um projeto antropológico (no sentido em que uma interrogação significativa e sistemática avança na filosofia kantiana) desde o período pré-crítico até Opus Postumun. Este “projeto antropológico” se apresenta como uma antropologia empírica de comportamentos sociais ou individuais aplicada a temas de estética e psicologia (especialmente em textos da década de 1760); conceitos de anatomia comparada, de estudos de biologia e fisiologia que podemos caracterizar como antropologia fisiológica (encontrados espalhados em publicações, cursos e cartas desde 1760 até 1802); elementos de antropologia pragmática como conhecimento de mundo (especialmente no curso); a menção de um projeto de antropologia transcendental associado à ideia de uma crítica do conhecimento (nas críticas e na Rx 903 do volume XV) e uma antropologia prática caraterizada como a parte “empírica” da filosofia prática (nos textos publicados de filosofia prática, nos cursos de moral e no volume XXIX, p. 599). Por um lado, encontramos tipos de conhecimentos específicos da natureza humana em cada caso, mas por outro, encontramos elementos de uma natureza humana que operaria como executora das regras que efetivam os juízos. Neste sentido, é preciso não se apressar na afirmação de que Kant adota uma determinada natureza humana a partir da qual deriva uma teoria do juízo, sem antes investigar todos os aspectos do que está sendo considerado em cada caso.
O projeto antropológico se comporia de elementos das cinco antropologias e estaria articulado sistematicamente na formulação das três perguntas kantianas acerca do saber, do fazer e do esperar que conduzem à quarta: o que é o homem? Dito por outras palavras, Kant se perguntaria pela possibilidade dos juízos e na sua resposta além de encontrarmos regras lógico-semânticas encontramos também os elementos que compõem o executor dessas regras.
Assim, para investigar todos os aspectos do projeto antropológico de Kant consideramos necessário e preliminar nos interrogarmos acerca do surgimento dos debates e dos conceitos a serem utilizados nos textos que nos interessam. Nesse sentido, uma declaração de Zammito 2002 sobre do nascimento da antropologia é bem pertinente. Cito Zammito (2002, 221-222):
A cristalização do discurso antropológico se origina desde a convergência (con-fusão) de uma quantidade de investigações diferentes: o modelo medico da psicologia fisiológica, o modelo biológico da alma animal, o modelo pragmatico ou conjectural da teoria histórico-cultural, o modelo psicológico literário do novo romance (Tristam Shandy, Sorrows of Young Werther), e o modelo filosófico da psicologia racional fundada no dilema da interação da substância (As três hipóteses).

Com efeito, durante todo o percurso do seu trabalho Kant se nutre de e debate com filósofos, mas também com médicos, psicólogos, romancistas e com escritores de teatro e poesia. Kant vai além dos naturalistas da época, lançando mão do teatro e da poesia como a de Molière, Shakespeare, Alexander Pope, Juvenal e Homero para investigar o que é o homem. Mas antes de entrar por essa via o que nos interessa aqui é especialmente a relação com os pesquisadores de história natural. É no diálogo –às vezes concordante e às vezes discordante- com estes cientistas que aparecem conceitos decisivos para a indagação kantiana acerca da natureza humana e que serão interpretados e peculiarmente usados em toda sua obra, inclusive para interpretar as fontes literárias.
Os diários de viagens dos marinheiros e estudos de anatomia comparada escritos desde o século XVI até as tentativas de classificação da natureza do século XVIII propiciaram o material com o qual Kant foi se munir para sua reflexão. O homem como um dos objetos de trabalho da história natural tinha sido incluído por John Ray em 1693 em um sistema classificatório de seres vivos. Mais tarde no ensaio sobre o orangotango de 1699 de Tyson o ser humano se encontraria dentro do conjunto dos primatas. Em 1735 com Linnaeus foi explicitamente incluído em uma classificação formal junto com animais e plantas e em 1749 o conde de Buffon acrescenta uma discussão necessária sobre a natureza em geral, que ecoará na interpretação sobre as diferenças entre os homens. Passa-se assim, de lhe darmos um lugar na classificação a nos perguntarmos pelas suas mudanças, diferenças específicas e peculiaridades.
Nesse percurso a História Natural instaurou um debate sobre o modo de abordar seu objeto em geral que incluía uma variante no modo de entender também o homem. Os naturalistas que realizavam trabalhos de campo e recolhiam a informação in loco precisavam estabelecer um método. A discussão se deu entre uma concepção de história natural descritiva e outra de desenvolvimento da história da natureza. O debate das diferentes perspectivas de estudo do século XVIII entre Naturbeschreibung e Naturgeschichte foi retomado por Immanuel Kant desde os textos do conde de Buffon e em confronto com os naturalistas Forster –pai e filho e com Herder. Esses modos de estudo da natureza também estavam estreitamente relacionados com as teorias da poligenia, da monogenia e da epigenia na biologia. Esses conceitos referem ao problema da origem e a formação dos seres vivos em geral e dos humanos em particular. Kant entrou nesse debate em favor de uma origem única da espécie humana, mas incluiu o uso do conceito de germe e de impulso formativo (Blumenbach) para explicar a diferença de formas e as capacidades humanas, especialmente no que concerne à raça e ao gênero. A partir daqui é possível compreender a introdução de conceitos como disposição, temperamento e caráter que serão úteis para articular os elementos anátomo-fisiológicos com as condutas práticas em geral ou especificamente morais. Todos esses conceitos foram usados por Kant como elementos para constituir o executor das operações judicativas teóricas, práticas e reflexionantes.

Neste trabalho apresento primeiro a disputa descrição-narração na história natural, segundo a diferença poligênese-monogênese e terceiro a questão da epigênese e a pré-formação. Cabe mencionar que os debates de Kant foram realizados durante a década de 1770 e 1780. Com estes elementos, que surgem da história natural, poderemos ver as marcas conceituais da concepção kantiana da problemática da história e da natureza humana e em especial do conceito de raça. Nosso objetivo é demonstrar que os conceitos são originados em discussões da história natural, mas são também reinterpretados e resignificados por Kant no seu novo uso. O esclarecimento do debate e o reconhecimento da interpretação kantiana dos conceitos da história natural nos permitiria entender parcialmente o alcance e o limite dos elementos “antropológicos” do executor das operações lógico-semânticas do formulador e solucionador de problemas do qual falamos no inicio deste trabalho.


  1. Debate sobre a descrição-narração na história natural

O Conde de Buffon (1845), em seu livro História Natural, geral e particular de 1749, introduz uma distinção metodológica fundamental para as pesquisas dos naturalistas da época entre o que ele denomina verdades abstractas e verdades empíricas. As verdades abstratas seriam aquelas que podem ser alcançadas pela demonstração matemática, é o caso da matematização da natureza na física feita por Newton. As verdades físicas seriam aquelas alcançadas pela indução empírica a partir da observação. O problema apontado pelo conde de Buffon consistia em não ficar em meras abstrações na História Natural –como teria acontecido com o sistema lógico de classificação de Linneaus- e poder alcançar uma articulação sistemática com as verdades físicas, considerando as relações dos organismos no espaço e no tempo. É como se a proposta consistisse em que o objeto determinado pela abstração dos universais deva ser considerado também num sistema relacional concreto (Sloan, 2006, 629 e ss.). Esta é uma questão que marcará o rumo da história natural e do que será mais tarde a antropologia e a biologia.
A partir daqui ou, melhor dizendo, contra essa distinção Kant elabora seus usos das noções de Naturgeschichte e Naturabeschreibung.
A História natural (Naturgeschichte) aparece pela primeira vez em História natural geral dos céus (1755). Kant apresenta sua própria versão da origem e desenvolvimento do universo. Mas a distinção entre aquele conceito e o da descrição da natureza (Naturabeschreibung) se localiza no texto de 1775 Das diferentes raças humanas.
Descrição da natureza versus história da natureza é um debate localizado no espaço do discurso da Ciência Natural e no tempo delimitado entre Linneaus e Buffon, mas é incorporado por Kant em um tema específico, porém como parte de um projeto filosófico. Cito Kant (VvRM; AA 02 B140-141):
Habitualmente, tomamos as designações: descrição da natureza e história da natureza num mesmo sentido. Contudo, é evidente que o conhecimento das coisas da natureza tal como elas são agora requer ainda o conhecimento fundamentado daquilo que foram anteriormente e da série de transformações que tiveram de sofrer para alcançar em toda parte o seu estado atual. A história da natureza, história de que praticamente ainda não dispomos, ensinar-nos-ia a transformação que a terra e as criaturas terrestres (vegetais e animais) sofreram através de migrações naturais e as derivações da forma originária da primeira espécie que daí resultaram. Provavelmente reduziria uma grande quantidade de espécies aparentemente diferentes a raças de um mesmo gênero e transformaria o sistema escolástico da descrição da natureza, atualmente tão vasto, num sistema para o uso do entendimento.

Tanto no texto de 1755 sobre a história do céu quanto no de 1775 sobre as raças Kant parece dar maior importância teórica à história natural do que à descrição da natureza. O motivo seria a possibilidade dessa perspectiva nos oferecer maior e melhor conhecimento da natureza e de permitir a resolução de problemas específicos como no caso da unidade das espécies e da direfença entre as raças, os povos e os sexos. Esta última questão será tema importante nos seus cursos de antropologia pragmática entre 1773 e 1796. Na descrição obtida por observação nos limitaríamos à constatação das variedades, mas a história dessas variedades nos daria a possibilidade de provar a hipótese da unidade, da origem única, de várias espécies, e talvez do homem. Kant manteve essa perspectiva em toda sua obra e em algumas ocasiões a história foi concebida a partir de um conceito heurístico.
Entretanto, em 1784, quando Herder, no seu livro Ideias para uma filosofia da história da humanidade, utiliza as coordenadas da diacronia e da sincronia na descrição histórica da natureza Kant lança mão de uma certa ironia e faz o seguinte julgamento (Kant, RezHerder, AA 08, A22):
Querer determinar que a organização do corpo [humano] está unida necessariamente, no exterior pela sua figura e no interior pela consideração ao seu cérebro, com a disposição para a marcha erguida, e, ainda, como uma mera organização dirigida a este fim contem o fundamento da capacidade racional, na qual, deste modo, o animal participaria, é algo que supera notadamente toda razão humana, que andaria tateando com um fio condutor fisiológico ou voaria com outro metafísico.

Apesar de alguns elogios, todo o trabalho da Resenha (1785) de Kant sobre o livro de Herder consiste em mostrar e demonstrar a impertinência das hipóteses históricas e do sem sentido dos conceitos usados no seu desenvolvimento. Independentemente de saber se a teoria de Herder devia ou não ser substituída por outra o problema em questão é sobre o significado dos seus conceitos. Não se trataria de apenas uma narrativa histórica de eventos mais ou menos verossímeis que permitiria ordenar os dados colhidos empiricamente em uma descrição consequente, mas do uso válido de conceitos teleológicos que permitam ordenar as séries de dados empíricos.
É nesse sentido que quando Kant usa da “história” também se defende das críticas de Forster considerando-as um mal-entendido sobre o problema do uso de princípios na pesquisa científica. Forster questiona o uso de princípios em uma história natural progressiva como sendo uma “ciência dos deuses” –por se perguntar pela origem- (UGTP, AA 08, A 41) em favor da observação na descrição da natureza, trabalho decididamente humano e empírico. A argumentação de Kant consistirá em demonstrar que com um mero andar com tateios empíricos, sem um princípio reitor, não poderá ser encontrada qualquer finalidade. Assim, Kant escreve em Sobre o uso dos princípios teleológicos (1788) (UGTP, AA 08, A 40):
Fico feliz pelo viajante meramente empírico e pela sua narrativa, principalmente quando se elabora um conhecimento no seu contexto, do qual a razão possa aproveitar algo com o fim de uma teoria.
(...)
No entanto, o próprio senhor Forster segue o guia do princípio de Linneaus da persistência do caráter na frutificação dos vegetais, sem o qual a descrição sistemática da natureza do reino vegetal não teria chegado a ser tão bem lograda e extensa.

A indicação de Kant a Forster é para marcar que sua observação empírica não é sem princípios, sem os quais não teria o que observar sistematicamente. A questão seria poder compreender uma descrição da natureza segundo princípios a partir da construção da narrativa da sua história. A história da natureza com princípios teleológicos compreenderia a descrição da natureza sistematicamente ordenada com princípios heurísticos (teleológicos). Dentro desse horizonte –não apenas classificatório senão também finalístico- é que aparece o ser humano fisiologicamente caracterizado. O argumento de 1775 –no texto Sobre as diferentes raças humanas- será mais sofisticado em 1788 –no texto Sobre o uso dos princípios teleológicos- e isto não é pouco, sua elaboração lhe permitirá explicitar seu procedimento metodológico. Escreve Kant (UGTP, AA 08, A 41):
... só a vinculação de determinadas condições atuais das coisas da natureza com suas causas em tempos longuinquos por meio de leis efetivas, que não imaginamos, mas deduzimos a partir das forças da natureza, tal e como estas se nos apresentam e se extende até onde nos permita a analogia, seria a história natural...

Dito por outras palavras, os dados da observação podem ser sistematicamente descritos se e somente se partimos de princípios deduzidos da ideia de uma natureza como sistema de forças e colocamos esses princípios como se fossem causas. Para Kant, é impossível pensar a natureza viva e o universo em seu conjunto sem princípios teleológicos e isso é estabelecido desde o texto de 1755. Porém, não podemos nos apressar e ver naquele início o anúncio das condições de possibilidade do juízo teleológico reflexionante estabelecidas no texto de 1790, isso é ler muito mais do que os escritos kantianos podem realmente nos oferecer. Por esse motivo somos cautelosos e em vez de tirar conclusões diretamente da terceira crítica fazemos o percurso do debate que permite ver a origem do uso dos conceitos em determinados contextos argumentativos.

  1. Debate poligênese-monogênese

Antes da terceira crítica os princípios teleológicos estão sendo considerados em relação a questões pontuais: em 1755 (História natural geral dos céus) para falar da história do universo, em 1783 (Resposta à pergunta: O que é o esclarecimento?) e 1784 (Ideia de uma história universal desde um ponto de vista cosmopolita) para falar da história humana, em 1775 (Das diferentes raças humanas), 1785 (Determinação do conceito de raça humana) e 1788 (Sobre o uso dos princípios teleológicos) para falar da história natural no que diz respeito à espécie e às raças. No último caso, a questão em jogo é poder não só responder à classificação do homem como espécie dentro do sistema do reino animal (segundo o sistema de Linneaus: mineral, vegetal e animal), senão também responder ao problema da diferença entre os habitantes humanos da Terra –problema este que se aprofunda na época do conde de Buffon. Em face à história dos homens os naturalistas se debatiam sobre a possibilidade de uma origem comum ou não das diferentes raças humanas. Os argumentos consideravam firmemente a descrição feita a partir dos resultados das observações oferecidas pela anatomia comparada: medidas do crâneo, ossada em geral, cor de pele, fisionomia, etc. Nesse sentido, a questão era: Como interpretar os dados obtidos por observação? Seria possível obter constantes e variáves que determinassem espécie, gênero, linhagem, raça ou deformação acidental? Como poderiam ser classificados? O problema não era apenas aguçar a observação com métodos de precisão, de medida ou ser mais atento aos detalhes. Tratava-se antes de uma questão conceitual.
Assim sendo, no caso específico apresentavam-se duas teses divergentes: a poligênese –que considerava diferentes origens de diferentes raças- e monogênese – que considerava uma origem para todos os humanos. Kant argumentará em favor da segunda opção.
No texto de 1775 Das diferentes raças humanas Kant utiliza a regra buffoniana da procriação para defender o princípio da unidade da espécie humana: animais que procriam conjuntamente crias férteis pertencem a um único e mesmo gênero físico (VvRM, AA 02, A 2, B 126). Porém a monogênese kantiana teve a peculiaridade de ser articulada com outros elementos para tentar dar conta da diferença de raça e gênero. Alix Cohen (2006) argumenta em favor de uma combinação entre monogênese e epigênese em Kant como a condição de possibilidade de uma universalidade empírica da antropologia. Para definir sua concepção de espécie como natural Kant partiria de duas premissas: 1. A unidade biológica da espécie humana (monogênese) e, 2. A existência de sementes que podem ou não podem se desenvolver no ambiente (predisposições). Estas predisposições seriam a realização das metas da Natureza para a espécie humana. A partir daí as raças são subcategorias da mesma espécie. Isto também começa a aparecer no texto de 1775 Das diferentes raças humanas.

  1. A questão da epigênese e a pré-formação

A argumentação kantiana em favor da monogenia se articulou com outro debate da ciência natural da época sobre epigênese e pré-formação.
A teoria da pré-formação tem duas linhas. Uma linha sustenta a pré-formação individual desde um embrião em um ovo ou esperma. A criação destes organismos nas suas propriedades essenciais não estaria determinada pelos antecessores, mas por Deus. Outra linha é a da preexistência de germes primordiais que com a fertilização se completam e conformam os organismos. A teoria da epigênese pode ser compreendida também em duas linhas. Uma representada pelo conde de Buffon que postula a interação entre moldes e moléculas, onde moléculas orgânicas teriam a matéria de todos os seres vivos que seria organizada por moldes interiores. Outra linha é representada por Caspar Friedrich Wolff segundo a qual o embrião se desenvolve por ação de uma vis essentialis ou força essencial (Zammitto, 1992, 2003; Sloan 1979, 2002; Cohen 2006).
Segundo Buffon, em sua História natural geral e particular (1749) o que encontramos de mais constante na natureza é o molde de cada espécie, tanto nos animais quanto nos vegetais, e o que encontramos de mais variável e corruptível é a substância da qual está feito. “Quer dizer que, para Buffon tanto quanto para os preformacionistas, o desenvolvimento é simplesmente o crescimento de um germe já conformado” (Andrade, 2009). Os seres vivos teriam moldes constantes que se modifican na relação com o ambiente, o clima e a comida. Note-se que em Buffon a mudança não deve ser compreendida como adaptação, mas como degeneração com relação a uma forma originária (Caponi, 2011). O termo “degeneração” é o conceito utilizado por Buffon para se referir às mudanças nas espécies.
Entretanto, em Kant opera-se um deslocamento no sentido do conceito. Em Ubirajara Rancan de Azevedo Marques (2007) encontramos um minucioso trabalho sobre o uso kantiano do termo epigênese. O pesquisador destaca o seu significado biológico e também o uso metafórico do termo e mostra seu vínculo com a noção de pré-formação para compreendermos o inato como os “primeiros germes” e “disposições” – dois conceitos utilizados longamente por Kant e que estão identificados no artigo de Marques. Avançando sobre os resultados desse trabalho podemos afirmar que em Kant haveria uma compreensão tanto dos germes e disposições quanto das mudanças que teriam permitido aos animais em geral e aos homens em particular serem mais aptos para determinadas ações e, deste modo, sobreviver em diferentes regiões da Terra. Assim sendo, o termo degeneração de Buffon parece deixar passo para a adaptação e conservação de Kant. Como exemplo, podemos citar um comentário de Kant de 1775 e outro de 1788 na sequência:
“Por fim, a qualidade do solo (umidade ou aridez) e a alimentação provocam igualmente aos poucos, nos animais de um mesmo tronco e raça, uma distinção hereditária ou linhagem, principalmente em vista do tamanho da proporção dos membros (grosso ou delgado), e do caráter natural, que, apesar de ser hibridamente assimilada no cruzamento com indivíduos estranhos, desaparece em poucas gerações sobre um outro solo e com outra alimentação (mesmo sem alteração do clima)” (VvMR, AA02, A 4, B 130)

“A maior unanimidade do fim na espécie humana não requer uma diferença muito grande das formas naturais que se transmitem, em consequência, as formas naturais que se transmitem devem ser compreendidas no sentido da conservação da espécie em um clima, sobre tudo, diferente de outro”. (UGTP, AA 08, A 52)

Para Kant, é a finalidade que ordena a possibilidade de compreender as modificações hereditárias em relação com a sobrevivência ou conservação em um ambiente determinado. Esta operação não só lhe permite manter seu argumento sobre a unidade da espécie senão também compreender a mudança, não apenas em relação com uma origem que foi degenerada (no sentido do conde de Buffon), senão em relação com uma finalidade que deve ser realizada em uma situação determinada, então o ser vivo sobrevive e se modifica segundo suas disposições originárias, mas desenvolvendo as suas capacidades específicas. Esta forma de compreender a fisiologia não é só útil no âmbito da biologia, é também útil para o que ele considerará nesse período de pragmática. Assim, Kant explica determinados fenômenos humanos não só a partir de disposições naturais senão também de disposições técnicas e morais, que se combinam com temperamentos e caracteres (Ver Perez 2010; 2010b).
O outro conceito mencionado, a saber, a vis essentialis parece ser análoga à noção de Blumenbach, Bildungstrieb, usada por Kant em KU (Zammito 2003, 75, 91). Cohen (2006, 678 e ss) considera que os conceitos de KU são uma clara posição kantiana em favor da epigênese. Porém, esta posição estaria limitada por princípios ordenadores ou predisposições (Zammito, 2003, 88) que só encontramos em uma interpretação da teoria de Buffon.

  1. Do uso do conceito de germe e de impulso formativo e as noções de disposição, temperamento e caráter

É dentro desse horizonte que Kant introduz (modificados) os conceitos de molde ou germe e degeneração (de Buffon) para explicar a variedade de raças humanas e suas aptidões. Assim, a raça se constituiria segundo o caráter e a variedade. O caráter seria o constante e a variedade o que dependendo da relação com o ambiente permitiria o desenvolvimento diferenciado de disposições e capacidades e sua transmição por herança. Deste modo, a raça humana poderia ser entendida a partir de disposições originárias reunidas no primeiro casal humano e o modo em que cada semente se adaptou em cada região (Ver Hahn 2012).
Segundo Kant em Sobre o uso dos princípios teleológicos (1788) cada disposição ou semente se desenvolveria por um impulso formativo (Blumenbach) no clima adequado. Bildungstrieb ou impulso formativo é compreendido por Kant como um princípio regulativo ou uma ideia heurística que, quando aplicada à pesquisa de seres vivos – no sistema de Linneaus corresponde a todo o reino animal e vegetal - permite-nos julgar os organismos como se eles fossem dirigidos por uma força vital, dando regularidade aos eventos.
Note-se que o como se é a marca de toda a diferença entre o que seria um conceito empírico e um regulativo. Não se trata de encontrar o objeto que lhe corresponde ao conceito impulso formativo ou força vital, mas de usar esse conceito como ordenador de regularidades e assim avançar nas condições de possibilidade da compreensão do fenômeno. Isto explicaria a realização de experiências cognitivas e práticas humanas. Dito por outras palavras, nossos problemas cognitivos ou práticos formulados em proposições são possíveis a partir de um dispositivo racional humano com um conjunto de elementos que permite a execução de operações em uma experiência. No Suposto começo da história humana (1786) esta questão é decididamente explítica. Kant elabora uma narrativa histórico-descritiva com conceitos empíricos e teleológicos que lhe permite apresentar uma “gênese” das experiências cognitivas e práticas. Assim, ele postula que a natureza teria depositado no homem disposições tanto para a sobrevivência quanto para a moralidade. Em relação com o temperamento Kant retoma nos cursos de antropologia a tradição dos quatro tipos (sanguíneo, fleumático, melancólico e colérico) a partir dos quais pode classificar as diferentes atitudes que podem favorecer ou obstaculizar a realização da liberdade. A medicina da época utilizava a antiga teoria dos humores para decidir sobre diferentes doenças e tratamentos, mas Kant faz um uso pragmático ou moral dos conceitos mudando o sentido estabelecido.

  1. Conclusão
Minha meta aqui foi mostrar a origem de alguns dos conceitos “antropológicos” que Kant utilizou durante a década de 1770 e 1780 para constituir o que ele denominou de “natureza humana” ou “ser humano”. Estes elementos originariamente fisiológicos, vindos do debate com a ciência natural, se introduzem na tentativa de resolução de alguns problemas específicos como o da unidade da espécie e a variedade das raças e, mais tarde, são aos poucos articulados com a questão da antropologia pragmática, a saber, o que o homem faz, pode e deve fazer de si mesmo, quer dizer, com a possibilidade da exequibilidade da lei moral e da liberdade. Isto significa que os conceitos passam de ser puramente empíricos ou heurísticos para se articularem com o que Kant chamou do domínio da razão prática.
Desde a década de 1770 Kant distingue entre uma antropologia como conhecimento pragmático do homem (permite decidir sobre aquilo que favorece ou obstaculiza o exercício da razão prática) e outra antropologia fisiológica. Porém, esta última antropologia não é sem discussão, não se adotam passivamente conceitos e explicações como se fosse parte de algum tipo de conhecimento neutral. Kant intervém diretamente no debate sobre a validade e o uso dos conceitos que lhe permitiriam sim reconhecer e construir uma natureza humana que possa dar conta de uma experiência cognitiva, de uma experiência prática, de uma experiência estética, etc, e poder realizar uma série de operações judicativas.
Neste sentido, pretendemos que o aqui apresentado seja mais um aporte para decidir a relação entre o que poderíamos entender como uma natureza humana e o funcionamento de estruturas proposicionais.

Referências
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