CONCEITOS DE ANTROPOLOGIA FISIOLÓGICA NA ANTROPOLOGIA KANTIANA
CONCEITOS DE ANTROPOLOGIA FISIOLÓGICA NA ANTROPOLOGIA
KANTIANA: KANT E OS NATURALISTAS EM UM DEBATE SOBRE A NATUREZA HUMANA
Daniel Omar
Perez
CNPq –
PUCPR
- Introdução acerca do modo de abordagem e do
tópico em questão
O fato de Kant nunca ter escrito que o verdadeiro
problema da razão pura era o de fazer uma ontologia, ou uma fundamentação das
ciências teoréticas, ou uma explicação de como funciona a mente é o que nos
autoriza a deixar de lado esse tipo de interpretação e levar adiante a leitura
da declaração direta e sem ambiguidades de sua própria letra. Assim, segundo consta
em seu escrito, a filosofia crítica pode ser abordada a partir da sua questão
fundamental enunciada do seguinte modo: “o verdadeiro problema da
razão pura está contido na seguinte pergunta: como são possíveis os juízos sintéticos a priori?” (KrV B19). Segundo Kant, a pergunta pela
possibilidade dos juízos, e não outra, é a questão fundamental da crítica. Se, como
quer Kant, isto é verdadeiro sobre seu próprio trabalho, então o nosso só pode
partir daqui. Essa interrogação, por um lado, serve como início do programa
kantiano e, por outro lado, funciona como fio condutor para desenvolver uma
interpretação sistemática dos trabalhos desenvolvidos durante os anos 1780 e
1790 e ainda articular as questões apresentadas no denominado período
pré-crítico. Deste modo, podemos entender que o exercício crítico da filosofia –em
sentido kantiano- é uma pesquisa sobre as condições lógico-semânticas das
proposições que não se sustentariam apenas no princípio de identidade e
não-contradição. Por outras palavras, a pergunta pelas condições de
possibilidade das proposições não é apenas uma declaração da letra de Kant e
nem um fio condutor para a interpretação de textos, é também um modo de
entender o trabalho da filosofia.
Assim sendo, esse
trabalho foi iniciado com a tese de doutorado de Loparic (1982), publicada na
forma de livro em (2000) A semântica
transcendental de Kant. O resultado mais importante desse estudo foi
compreender a razão como aparelho formulador e solucionador de problemas proposto
a partir de proposições cognitivas válidas. A validade das proposições
teoréticas (cognitivas) estaria decidida por uma regra lógica e duas
semânticas, a saber: 1. As proposições não podem ser autocontraditórias; 2. Os
conceitos das proposições devem poder referir a objetos dados ou construídos na
sensibilidade; 3. As formas proposicionais devem poder se relacionar com as
formas da sensibilidade. Após esta pesquisa Loparic publicou durante a década
de 1990 outros textos como resultado parcial do avanço em outros tipos
proposicionais. Deste modo, podemos ir da primeira crítica para a segunda e a
terceira com o mesmo fio condutor e nos perguntar pela possibilidade das
proposições cognitivas, práticas, estéticas, etc. e compreender a razão em
sentido amplo como aparelho ou dispositivo para formular e decidir a
possibilidade de resolver problemas em diferentes campos semânticos. Avancei
sistemáticamente nessa questão na minha tese de doutorado defendida em 2002,
publicada em forma de livro com modificações em Perez (2008). Este trabalho nos
conduziu não só a interrogarmos a possibilidade dos tipos específicos de
proposições da experiência cognitiva teorética e prática em sentido estrito
senão também as proposições da história, do direito, da política, da pedagogia,
da virtude e da antropologia pragmática, até nos levar para a indagação acerca
dos elementos “antropológicos” do executor das operações lógico-semânticas do
formulador e solucionador de problemas. A primeira parte deste trabalho foi
sendo realizado durante a década de 1990 e 2000 pelo que Ricardo Terra (2012) denominou
de “a escola semântica” referindo-se ás diversas publicações do grupo tais como
Loparic (2000), Hahn (2006), Faggion (2006), Linhares (2005), Perez (2008),
entre outros. A segunda parte dos trabalhos, aqueles que se referem aos
elementos “antropológicos” do executor das operações está sendo desenvolvido.
O tipo específico
de proposições da antropologia pragmática fez aparecer em destaque o problema
da relação entre a estrutura proposicional e natureza humana. A estrutura
proposicional, estudada sob a pergunta acerca das condições de possibilidade
dos juízos, tem relação com o aparelho executor das operações judicativas,
estudada sob a pergunta acerca da natureza humana. Abordei esse tema em Perez (2009),
(2010) e (2010b). Porém, é preciso destacar que por outras vias, estudiosos
como Louden (2000), Longuenesse (2005) e Hanna (2006) –entre outros- também
foram levados a perguntar pela mesma relação que destacamos, a saber, entre
juízo, razão e natureza humana. No caso de Louden a antropologia é considerada
a parte impura da filosofia prática que desde a pureza da sua fundamentação
encontraria na natureza humana seu domínio de aplicabilidade. Nos casos de
Longuenesse e Hanna uma natureza humana teria sido pressuposta por Kant e seria
anterior à sua teoria do juízo. Em Longuenesse sua posição está muito clara na
introdução da sua publicação de 2005, quando destaca o ponto de vista humano e explica sua interpretação da posição de
Kant. Em Hanna (2006) seu trabalho mostra uma filosofia da mente com uma
natureza humana com determinadas características físicas e de funcionamento que
produzem representações.
Nossa hipótese,
como já se advertiu até aqui, é a que Kant, no seu período crítico, parte da
estrutura de uma proposição da qual se pergunta sobre suas condições de
possibilidade (formulação e validade) e daí deriva a natureza “humana” do
executor das operações judicativas. Na medida em que fomos avançando no detalhe
da relação proposição-natureza humana descobrimos que as questões
antropológicas não apareciam apenas no curso de antropologia senão que
perpassavam toda a obra de Kant.
Um trabalho de
Claudia Schmidt (2007) nos oferece diferentes documentos textuais e alguma
referência a outros estudiosos onde se encontrariam possíveis caracterizações
da antropologia em sentido transcendental, empírico, pragmático e moral. Pela
nossa parte, podemos constatar o que chamamos de um projeto antropológico (no sentido em que uma interrogação
significativa e sistemática avança na filosofia kantiana) desde o período
pré-crítico até Opus Postumun. Este
“projeto antropológico” se apresenta como uma antropologia empírica de comportamentos sociais ou individuais
aplicada a temas de estética e psicologia (especialmente em textos da década de
1760); conceitos de anatomia comparada, de estudos de biologia e fisiologia que
podemos caracterizar como antropologia
fisiológica (encontrados espalhados em publicações, cursos e cartas desde
1760 até 1802); elementos de antropologia
pragmática como conhecimento de mundo (especialmente no curso); a menção de
um projeto de antropologia
transcendental associado à ideia de uma crítica do conhecimento (nas
críticas e na Rx 903 do volume XV) e uma antropologia
prática caraterizada como a parte “empírica” da filosofia prática (nos
textos publicados de filosofia prática, nos cursos de moral e no volume XXIX, p.
599). Por um lado, encontramos tipos de conhecimentos específicos da natureza
humana em cada caso, mas por outro, encontramos elementos de uma natureza
humana que operaria como executora das regras que efetivam os juízos. Neste
sentido, é preciso não se apressar na afirmação de que Kant adota uma
determinada natureza humana a partir da qual deriva uma teoria do juízo, sem
antes investigar todos os aspectos do que está sendo considerado em cada caso.
O projeto
antropológico se comporia de elementos das cinco antropologias e estaria
articulado sistematicamente na formulação das três perguntas kantianas acerca
do saber, do fazer e do esperar que conduzem à quarta: o que é o homem? Dito
por outras palavras, Kant se perguntaria pela possibilidade dos juízos e na sua
resposta além de encontrarmos regras lógico-semânticas encontramos também os
elementos que compõem o executor dessas regras.
Assim, para
investigar todos os aspectos do projeto
antropológico de Kant consideramos necessário e preliminar nos interrogarmos
acerca do surgimento dos debates e dos conceitos a serem utilizados nos textos
que nos interessam. Nesse sentido, uma declaração de Zammito 2002 sobre do
nascimento da antropologia é bem pertinente. Cito Zammito (2002, 221-222):
A cristalização do discurso antropológico se origina desde a
convergência (con-fusão) de uma
quantidade de investigações diferentes: o modelo medico da psicologia
fisiológica, o modelo biológico da alma animal, o modelo pragmatico ou
conjectural da teoria histórico-cultural, o modelo psicológico literário do
novo romance (Tristam Shandy, Sorrows of Young Werther), e o modelo filosófico
da psicologia racional fundada no dilema da interação da substância (As três
hipóteses).
Com efeito, durante
todo o percurso do seu trabalho Kant se nutre de e debate com
filósofos, mas também com médicos, psicólogos, romancistas e com escritores de
teatro e poesia. Kant vai além dos naturalistas da época, lançando mão do
teatro e da poesia como a de Molière, Shakespeare, Alexander Pope, Juvenal e
Homero para investigar o que é o homem. Mas antes de entrar por essa via o que
nos interessa aqui é especialmente a relação com os pesquisadores de história
natural. É no diálogo –às vezes concordante e às vezes discordante- com estes
cientistas que aparecem conceitos decisivos para a indagação kantiana acerca da
natureza humana e que serão interpretados e peculiarmente usados em toda sua
obra, inclusive para interpretar as fontes literárias.
Os diários de
viagens dos marinheiros e estudos de anatomia comparada escritos desde o século
XVI até as tentativas de classificação da natureza do século XVIII propiciaram
o material com o qual Kant foi se munir para sua reflexão. O homem como um dos
objetos de trabalho da história natural tinha sido incluído por John Ray em
1693 em um sistema classificatório de seres vivos. Mais tarde no ensaio sobre o
orangotango de 1699 de Tyson o ser humano se encontraria dentro do conjunto dos
primatas. Em 1735 com Linnaeus foi explicitamente incluído em uma classificação
formal junto com animais e plantas e em 1749 o conde de Buffon acrescenta uma
discussão necessária sobre a natureza em geral, que ecoará na interpretação
sobre as diferenças entre os homens. Passa-se assim, de lhe darmos um lugar na
classificação a nos perguntarmos pelas suas mudanças, diferenças específicas e
peculiaridades.
Nesse percurso a
História Natural instaurou um debate sobre o modo de abordar seu objeto em
geral que incluía uma variante no modo de entender também o homem. Os
naturalistas que realizavam trabalhos de campo e recolhiam a informação in loco precisavam estabelecer um
método. A discussão se deu entre uma concepção de história natural descritiva e outra de desenvolvimento da história da natureza. O debate das diferentes
perspectivas de estudo do século XVIII entre Naturbeschreibung e Naturgeschichte
foi retomado por Immanuel Kant desde os textos do conde de Buffon e em
confronto com os naturalistas Forster –pai e filho e com Herder. Esses modos de
estudo da natureza também estavam estreitamente relacionados com as teorias da poligenia, da monogenia e da epigenia
na biologia. Esses conceitos referem ao problema da origem e a formação dos
seres vivos em geral e dos humanos em particular. Kant entrou nesse debate em
favor de uma origem única da espécie humana, mas incluiu o uso do conceito de germe e de impulso formativo (Blumenbach) para explicar a diferença de formas
e as capacidades humanas, especialmente no que concerne à raça e ao gênero. A
partir daqui é possível compreender a introdução de conceitos como disposição, temperamento e caráter
que serão úteis para articular os elementos anátomo-fisiológicos com as
condutas práticas em geral ou especificamente morais. Todos esses conceitos foram
usados por Kant como elementos para constituir o executor das operações
judicativas teóricas, práticas e reflexionantes.
Neste trabalho
apresento primeiro a disputa
descrição-narração na história natural, segundo
a diferença poligênese-monogênese e terceiro
a questão da epigênese e a pré-formação. Cabe mencionar que os debates de Kant
foram realizados durante a década de 1770 e 1780. Com estes elementos, que
surgem da história natural, poderemos ver as marcas conceituais da concepção
kantiana da problemática da história e da natureza humana e em especial do conceito
de raça. Nosso objetivo é demonstrar que os conceitos são originados em
discussões da história natural, mas são também reinterpretados e resignificados
por Kant no seu novo uso. O esclarecimento do debate e o reconhecimento da
interpretação kantiana dos conceitos da história natural nos permitiria
entender parcialmente o alcance e o limite dos elementos “antropológicos” do
executor das operações lógico-semânticas do formulador e solucionador de
problemas do qual falamos no inicio deste trabalho.
- Debate sobre a descrição-narração na história
natural
O Conde de
Buffon (1845), em seu livro História
Natural, geral e particular de 1749, introduz uma distinção metodológica
fundamental para as pesquisas dos naturalistas da época entre o que ele
denomina verdades abstractas e verdades empíricas. As verdades abstratas seriam
aquelas que podem ser alcançadas pela demonstração matemática, é o caso da
matematização da natureza na física feita por Newton. As verdades físicas
seriam aquelas alcançadas pela indução empírica a partir da observação. O
problema apontado pelo conde de Buffon consistia em não ficar em meras
abstrações na História Natural –como teria acontecido com o sistema lógico de
classificação de Linneaus- e poder alcançar uma articulação sistemática com as
verdades físicas, considerando as relações dos organismos no espaço e no tempo.
É como se a proposta consistisse em que o objeto determinado pela abstração dos
universais deva ser considerado também num sistema relacional concreto (Sloan,
2006, 629 e ss.). Esta é uma questão que marcará o rumo da história natural e
do que será mais tarde a antropologia e a biologia.
A partir daqui
ou, melhor dizendo, contra essa distinção Kant elabora seus usos das noções de Naturgeschichte e Naturabeschreibung.
A História
natural (Naturgeschichte) aparece
pela primeira vez em História natural
geral dos céus (1755). Kant apresenta sua própria versão da origem e
desenvolvimento do universo. Mas a distinção entre aquele conceito e o da
descrição da natureza (Naturabeschreibung)
se localiza no texto de 1775 Das
diferentes raças humanas.
Descrição da
natureza versus história da natureza é um debate localizado no espaço do
discurso da Ciência Natural e no tempo delimitado entre Linneaus e Buffon, mas
é incorporado por Kant em um tema específico, porém como parte de um projeto
filosófico. Cito Kant (VvRM;
AA 02 B140-141):
Habitualmente, tomamos as designações: descrição da natureza e história
da natureza num mesmo sentido. Contudo, é evidente que o conhecimento das
coisas da natureza tal como elas são agora requer ainda o conhecimento
fundamentado daquilo que foram anteriormente e da série de transformações que
tiveram de sofrer para alcançar em toda parte o seu estado atual. A história da
natureza, história de que praticamente ainda não dispomos, ensinar-nos-ia a
transformação que a terra e as criaturas terrestres (vegetais e animais)
sofreram através de migrações naturais e as derivações da forma originária da
primeira espécie que daí resultaram. Provavelmente reduziria uma grande
quantidade de espécies aparentemente diferentes a raças de um mesmo gênero e
transformaria o sistema escolástico da descrição da natureza, atualmente tão
vasto, num sistema para o uso do entendimento.
Tanto no texto
de 1755 sobre a história do céu quanto no de 1775 sobre as raças Kant parece
dar maior importância teórica à história natural do que à descrição da
natureza. O motivo seria a possibilidade dessa perspectiva nos oferecer maior e
melhor conhecimento da natureza e de permitir a resolução de problemas
específicos como no caso da unidade das espécies e da direfença entre as raças,
os povos e os sexos. Esta última questão será tema importante nos seus cursos
de antropologia pragmática entre 1773 e 1796. Na descrição obtida por observação
nos limitaríamos à constatação das variedades, mas a história dessas variedades
nos daria a possibilidade de provar a hipótese da unidade, da origem única, de
várias espécies, e talvez do homem. Kant manteve essa perspectiva em toda sua
obra e em algumas ocasiões a história foi concebida a partir de um conceito
heurístico.
Entretanto, em
1784, quando Herder, no seu livro Ideias
para uma filosofia da história da humanidade, utiliza as coordenadas da
diacronia e da sincronia na descrição histórica da natureza Kant lança mão de
uma certa ironia e faz o seguinte julgamento (Kant, RezHerder, AA 08, A22):
Querer determinar que a organização do corpo [humano] está unida
necessariamente, no exterior pela sua figura e no interior pela consideração ao
seu cérebro, com a disposição para a marcha erguida, e, ainda, como uma mera
organização dirigida a este fim contem o fundamento da capacidade racional, na qual,
deste modo, o animal participaria, é algo que supera notadamente toda razão
humana, que andaria tateando com um fio condutor fisiológico ou voaria com
outro metafísico.
Apesar de alguns
elogios, todo o trabalho da Resenha
(1785) de Kant sobre o livro de Herder consiste em mostrar e demonstrar a
impertinência das hipóteses históricas e do sem sentido dos conceitos usados no
seu desenvolvimento. Independentemente de saber se a teoria de Herder devia ou
não ser substituída por outra o problema em questão é sobre o significado dos
seus conceitos. Não se trataria de apenas uma narrativa histórica de eventos
mais ou menos verossímeis que permitiria ordenar os dados colhidos
empiricamente em uma descrição consequente, mas do uso válido de conceitos
teleológicos que permitam ordenar as séries de dados empíricos.
É nesse sentido
que quando Kant usa da “história” também se defende das críticas de Forster
considerando-as um mal-entendido sobre o problema do uso de princípios na
pesquisa científica. Forster questiona o uso de princípios em uma história
natural progressiva como sendo uma “ciência dos deuses” –por se perguntar pela
origem- (UGTP, AA 08, A 41) em favor da observação na descrição da natureza,
trabalho decididamente humano e empírico. A argumentação de Kant consistirá em
demonstrar que com um mero andar com tateios empíricos, sem um princípio
reitor, não poderá ser encontrada qualquer finalidade. Assim, Kant escreve em Sobre o uso dos princípios teleológicos (1788)
(UGTP, AA 08, A 40):
Fico feliz pelo viajante meramente empírico e pela sua narrativa,
principalmente quando se elabora um conhecimento no seu contexto, do qual a
razão possa aproveitar algo com o fim de uma teoria.
(...)
No entanto, o próprio senhor Forster segue o guia do princípio de
Linneaus da persistência do caráter na frutificação dos vegetais, sem o qual a
descrição sistemática da natureza do reino vegetal não teria chegado a ser tão
bem lograda e extensa.
A indicação de
Kant a Forster é para marcar que sua observação empírica não é sem princípios,
sem os quais não teria o que observar sistematicamente. A questão seria poder
compreender uma descrição da natureza segundo princípios a partir da construção
da narrativa da sua história. A história da natureza com princípios
teleológicos compreenderia a descrição da natureza sistematicamente ordenada
com princípios heurísticos (teleológicos). Dentro desse horizonte –não apenas
classificatório senão também finalístico- é que aparece o ser humano
fisiologicamente caracterizado. O argumento de 1775 –no texto Sobre as diferentes raças humanas- será
mais sofisticado em 1788 –no texto Sobre
o uso dos princípios teleológicos- e isto não é pouco, sua elaboração lhe
permitirá explicitar seu procedimento metodológico. Escreve Kant (UGTP, AA 08,
A 41):
... só a vinculação de determinadas condições atuais das coisas da
natureza com suas causas em tempos longuinquos por meio de leis efetivas, que
não imaginamos, mas deduzimos a partir das forças da natureza, tal e como estas
se nos apresentam e se extende até onde nos permita a analogia, seria a
história natural...
Dito por outras
palavras, os dados da observação podem ser sistematicamente descritos se e
somente se partimos de princípios deduzidos da ideia de uma natureza como
sistema de forças e colocamos esses princípios como se fossem causas. Para
Kant, é impossível pensar a natureza viva e o universo em seu conjunto sem
princípios teleológicos e isso é estabelecido desde o texto de 1755. Porém, não
podemos nos apressar e ver naquele início o anúncio das condições de
possibilidade do juízo teleológico reflexionante estabelecidas no texto de 1790,
isso é ler muito mais do que os escritos kantianos podem realmente nos
oferecer. Por esse motivo somos cautelosos e em vez de tirar conclusões
diretamente da terceira crítica fazemos o percurso do debate que permite ver a
origem do uso dos conceitos em determinados contextos argumentativos.
- Debate poligênese-monogênese
Antes da terceira crítica os princípios teleológicos
estão sendo considerados em relação a questões pontuais: em 1755 (História natural geral dos céus) para
falar da história do universo, em 1783 (Resposta
à pergunta: O que é o esclarecimento?) e 1784 (Ideia de uma história universal desde um ponto de vista cosmopolita)
para falar da história humana, em 1775 (Das
diferentes raças humanas), 1785 (Determinação
do conceito de raça humana) e 1788 (Sobre
o uso dos princípios teleológicos) para falar da história natural no que
diz respeito à espécie e às raças. No último caso, a questão em jogo é poder
não só responder à classificação do homem como espécie dentro do sistema do
reino animal (segundo o sistema de Linneaus: mineral, vegetal e animal), senão
também responder ao problema da diferença entre os habitantes humanos da Terra
–problema este que se aprofunda na época do conde de Buffon. Em face à história
dos homens os naturalistas se debatiam sobre a possibilidade de uma origem
comum ou não das diferentes raças humanas. Os argumentos consideravam
firmemente a descrição feita a partir dos resultados das observações oferecidas
pela anatomia comparada: medidas do crâneo, ossada em geral, cor de pele,
fisionomia, etc. Nesse sentido, a questão era: Como interpretar os dados
obtidos por observação? Seria possível obter constantes e variáves que
determinassem espécie, gênero, linhagem, raça ou deformação acidental? Como
poderiam ser classificados? O problema não era apenas aguçar a observação com
métodos de precisão, de medida ou ser mais atento aos detalhes. Tratava-se antes
de uma questão conceitual.
Assim sendo, no
caso específico apresentavam-se duas teses divergentes: a poligênese –que
considerava diferentes origens de diferentes raças- e monogênese – que
considerava uma origem para todos os humanos. Kant argumentará em favor da
segunda opção.
No texto de 1775
Das diferentes raças humanas Kant
utiliza a regra buffoniana da
procriação para defender o princípio da unidade da espécie humana: animais que procriam conjuntamente crias
férteis pertencem a um único e mesmo gênero físico (VvRM, AA 02, A 2, B
126). Porém a monogênese kantiana teve a peculiaridade de ser articulada com
outros elementos para tentar dar conta da diferença de raça e gênero. Alix
Cohen (2006) argumenta em favor de uma combinação entre monogênese e epigênese
em Kant como a condição de possibilidade de uma universalidade empírica da antropologia. Para definir sua concepção
de espécie como natural Kant partiria de duas premissas: 1. A unidade biológica
da espécie humana (monogênese) e, 2. A existência de sementes que podem ou não
podem se desenvolver no ambiente (predisposições). Estas predisposições seriam
a realização das metas da Natureza para a espécie humana. A partir daí as raças
são subcategorias da mesma espécie. Isto também começa a aparecer no texto de
1775 Das diferentes raças humanas.
- A questão da epigênese e a pré-formação
A argumentação
kantiana em favor da monogenia se articulou com outro debate da ciência natural
da época sobre epigênese e pré-formação.
A teoria da pré-formação tem duas linhas. Uma linha
sustenta a pré-formação individual desde um embrião em um ovo ou esperma. A criação destes organismos nas suas
propriedades essenciais não estaria determinada pelos antecessores, mas por
Deus. Outra linha é a da preexistência
de germes primordiais que com a fertilização se completam e conformam os
organismos. A teoria da epigênese
pode ser compreendida também em duas linhas. Uma representada pelo conde de Buffon que postula a interação entre
moldes e moléculas, onde moléculas orgânicas teriam a matéria de todos os seres
vivos que seria organizada por moldes interiores. Outra linha é representada
por Caspar
Friedrich Wolff segundo a qual o embrião
se desenvolve por ação de uma vis
essentialis ou força essencial (Zammitto, 1992, 2003; Sloan 1979, 2002;
Cohen 2006).
Segundo Buffon,
em sua História natural geral e
particular (1749) o que encontramos de mais constante na natureza é o molde
de cada espécie, tanto nos animais quanto nos vegetais, e o que encontramos de
mais variável e corruptível é a substância da qual está feito. “Quer dizer que,
para Buffon tanto quanto para os preformacionistas, o desenvolvimento é
simplesmente o crescimento de um germe já conformado” (Andrade, 2009). Os seres
vivos teriam moldes constantes que se modifican na relação com o ambiente, o
clima e a comida. Note-se que em Buffon a mudança não deve ser compreendida
como adaptação, mas como degeneração com relação a uma forma originária
(Caponi, 2011). O termo “degeneração” é o conceito utilizado por Buffon para se
referir às mudanças nas espécies.
Entretanto, em
Kant opera-se um deslocamento no sentido do conceito. Em Ubirajara Rancan de
Azevedo Marques (2007) encontramos um minucioso trabalho sobre o uso kantiano
do termo epigênese. O pesquisador destaca o seu significado biológico e também
o uso metafórico do termo e mostra
seu vínculo com a noção de pré-formação para compreendermos o inato como os
“primeiros germes” e “disposições” – dois conceitos utilizados longamente por
Kant e que estão identificados no artigo de Marques. Avançando sobre os
resultados desse trabalho podemos afirmar que em Kant haveria uma compreensão
tanto dos germes e disposições quanto das mudanças que teriam permitido aos
animais em geral e aos homens em particular serem mais aptos para determinadas
ações e, deste modo, sobreviver em diferentes regiões da Terra. Assim sendo, o
termo degeneração de Buffon parece
deixar passo para a adaptação e conservação de Kant. Como exemplo,
podemos citar um comentário de Kant de 1775 e outro de 1788 na sequência:
“Por fim, a qualidade do solo (umidade ou aridez) e a alimentação
provocam igualmente aos poucos, nos animais de um mesmo tronco e raça, uma
distinção hereditária ou linhagem, principalmente em vista do tamanho da
proporção dos membros (grosso ou delgado), e do caráter natural, que, apesar de
ser hibridamente assimilada no cruzamento com indivíduos estranhos, desaparece
em poucas gerações sobre um outro solo e com outra alimentação (mesmo sem
alteração do clima)” (VvMR, AA02, A 4, B 130)
“A maior unanimidade do fim na espécie humana não requer uma diferença
muito grande das formas naturais que se transmitem, em consequência, as formas
naturais que se transmitem devem ser compreendidas no sentido da conservação da
espécie em um clima, sobre tudo, diferente de outro”. (UGTP, AA 08, A 52)
Para Kant, é a
finalidade que ordena a possibilidade de compreender as modificações hereditárias
em relação com a sobrevivência ou conservação em um ambiente determinado. Esta
operação não só lhe permite manter seu argumento sobre a unidade da espécie
senão também compreender a mudança, não apenas em relação com uma origem que
foi degenerada (no sentido do conde de Buffon), senão em relação com uma
finalidade que deve ser realizada em uma situação determinada, então o ser vivo
sobrevive e se modifica segundo suas disposições originárias, mas desenvolvendo
as suas capacidades específicas. Esta forma de compreender a fisiologia não é
só útil no âmbito da biologia, é também útil para o que ele considerará nesse
período de pragmática. Assim, Kant
explica determinados fenômenos humanos não só a partir de disposições naturais
senão também de disposições técnicas e morais, que se combinam com
temperamentos e caracteres (Ver Perez 2010; 2010b).
O outro conceito
mencionado, a saber, a vis essentialis
parece ser análoga à noção de Blumenbach, Bildungstrieb,
usada por Kant em KU (Zammito 2003, 75, 91). Cohen (2006, 678 e ss) considera que
os conceitos de KU são uma clara posição kantiana em favor da epigênese. Porém,
esta posição estaria limitada por princípios ordenadores ou predisposições (Zammito,
2003, 88) que só encontramos em uma interpretação da teoria de Buffon.
- Do uso do conceito de germe e de impulso
formativo e as noções de disposição, temperamento e caráter
É dentro desse
horizonte que Kant introduz (modificados) os conceitos de molde ou germe e
degeneração (de Buffon) para explicar a variedade de raças humanas e suas
aptidões. Assim, a raça se constituiria segundo o caráter e a variedade. O
caráter seria o constante e a variedade o que dependendo da relação com o
ambiente permitiria o desenvolvimento diferenciado de disposições e capacidades
e sua transmição por herança. Deste modo, a raça humana poderia ser entendida a
partir de disposições originárias reunidas no primeiro casal humano e o modo em
que cada semente se adaptou em cada região (Ver Hahn 2012).
Segundo Kant em Sobre o uso dos princípios teleológicos (1788)
cada disposição ou semente se desenvolveria por um impulso formativo
(Blumenbach) no clima adequado. Bildungstrieb
ou impulso formativo é compreendido por Kant como um princípio regulativo ou
uma ideia heurística que, quando aplicada à pesquisa de seres vivos – no
sistema de Linneaus corresponde a todo o reino animal e vegetal - permite-nos
julgar os organismos como se eles fossem dirigidos por uma força vital, dando
regularidade aos eventos.
Note-se que o como se é a marca de toda a diferença
entre o que seria um conceito empírico e um regulativo. Não se trata de
encontrar o objeto que lhe corresponde ao conceito impulso formativo ou força
vital, mas de usar esse conceito como ordenador de regularidades e assim
avançar nas condições de possibilidade da compreensão do fenômeno. Isto
explicaria a realização de experiências cognitivas e práticas humanas. Dito por
outras palavras, nossos problemas cognitivos ou práticos formulados em
proposições são possíveis a partir de um dispositivo racional humano com um
conjunto de elementos que permite a execução de operações em uma experiência. No
Suposto começo da história humana
(1786) esta questão é decididamente explítica. Kant elabora uma narrativa
histórico-descritiva com conceitos empíricos e teleológicos que lhe permite
apresentar uma “gênese” das experiências cognitivas e práticas. Assim, ele
postula que a natureza teria depositado no homem disposições tanto para a
sobrevivência quanto para a moralidade. Em relação com o temperamento Kant
retoma nos cursos de antropologia a tradição dos quatro tipos (sanguíneo, fleumático,
melancólico e colérico) a partir dos quais pode classificar as diferentes
atitudes que podem favorecer ou obstaculizar a realização da liberdade. A
medicina da época utilizava a antiga teoria dos humores para decidir sobre
diferentes doenças e tratamentos, mas Kant faz um uso pragmático ou moral dos
conceitos mudando o sentido estabelecido.
- Conclusão
Minha meta aqui
foi mostrar a origem de alguns dos conceitos “antropológicos” que Kant utilizou
durante a década de 1770 e 1780 para constituir o que ele denominou de
“natureza humana” ou “ser humano”. Estes elementos originariamente
fisiológicos, vindos do debate com a ciência natural, se introduzem na
tentativa de resolução de alguns problemas específicos como o da unidade da
espécie e a variedade das raças e, mais tarde, são aos poucos articulados com a
questão da antropologia pragmática, a saber, o que o homem faz, pode e deve
fazer de si mesmo, quer dizer, com a possibilidade da exequibilidade da lei moral
e da liberdade. Isto significa que os conceitos passam de ser puramente
empíricos ou heurísticos para se articularem com o que Kant chamou do domínio
da razão prática.
Desde a década
de 1770 Kant distingue entre uma antropologia como conhecimento pragmático do
homem (permite decidir sobre aquilo que favorece ou obstaculiza o exercício da
razão prática) e outra antropologia fisiológica. Porém, esta última
antropologia não é sem discussão, não se adotam passivamente conceitos e
explicações como se fosse parte de algum tipo de conhecimento neutral. Kant
intervém diretamente no debate sobre a validade e o uso dos conceitos que lhe
permitiriam sim reconhecer e construir uma natureza humana que possa dar conta
de uma experiência cognitiva, de uma experiência prática, de uma experiência
estética, etc, e poder realizar uma série de operações judicativas.
Neste sentido,
pretendemos que o aqui apresentado seja mais um aporte para decidir a relação
entre o que poderíamos entender como uma natureza humana e o funcionamento de
estruturas proposicionais.
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